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5 de agosto de 2013

Respeitar as diferenças é educar para a vida

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Por Iêda Leal

“A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo. Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião.
Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas podem aprender a odiar, podem também aprender a amar”. 
Nelson Mandela

A educação formal é um instrumento fundamental na construção, desconstrução e ressignificação de valores que perpassam as relações estabelecidas entre os seres humanos dentro das escolas em todos os segmentos, abrangendo mães, pais, estudantes, professores e funcionários administrativos. No entanto, os trabalhadores da Educação é que serão os grandes responsáveis pelas mudanças necessárias para o reconhecimento e valorização da história dos negros no Brasil. 

Cada um de nós carrega consigo várias heranças: somos herdeiros de uma sociedade escravocrata que, a todo momento, nos remete à história da escravidão como tendo sido um fato necessário para a construção do País e não como a subjugação de milhares de seres humanos africanos, num período fundamentalmente comercial, de solidificação de uma sociedade capitalista, de desvalorização da pessoa humana e de relações de poder de subalternização da raça negra.

No entanto, somos também herdeiros de uma outra cultura, profundamente marcante e que tem contribuído para a confirmação do nosso ressurgimento histórico: a de acreditar que outro mundo é possível por meio da percepção de uma outra relação com os processos culturais, um outro olhar sobre a constituição das famílias, da economia, da relação com o sagrado ou com os fenômenos da natureza, com o processo educacional, com as possibilidades de alimentação, tanto do corpo como da alma... Enfim, um jeito de viver o mundo com experiências diferentes, mas com absoluta crença na importância de cada pessoa e num profundo respeito ao próximo.

Nossa história, já há algum tempo, começa a ser contada! Nossa cultura, até pouco tempo desconhecida, necessita agora ser reconhecida e valorizada! É parte de nós e integra a construção política, econômica e racial da história do Brasil. Quando o ex-presidente Lula, em janeiro de 2003, sancionou a primeira lei de seu governo, atendendo a uma demanda de décadas do Movimento Negro Brasileiro, ele não propôs simplesmente uma modificação no currículo escolar brasileiro e, sim, uma profunda ressignificação da educação brasileira.

Nesse contexto, é necessário lembrar que a Lei No 10.639, sancionada no dia 09 de janeiro de 2003, não é uma lei qualquer, pois altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/96), incluindo nos currículos escolares o componente História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.

Igualmente importante foi a aprovação do parecer No 03/2004, em 10 de março daquele ano, pelo Conselho Nacional de Educação, tendo por relatora a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Tal parecer apresenta os dispositivos legais que asseguram aos brasileiros o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como igual direito às histórias e culturas componentes da nação brasileira.

Essa inserção nos currículos escolares necessariamente modifica o Projeto Político Pedagógico da Unidade Escolar, os livros didáticos, os planejamentos e diários dos trabalhadores em educação, não apenas alterando as relações sociais estabelecidas no ambiente escolar, como também quebrando um círculo vicioso que mantinha nossa população num permanente processo de exclusão política e racial.

As ações, quando assumidas pelo coletivo, possibilitam minimizar significativamente o sofrimento gerado pela violência do racismo no contexto da educação formal. O que a nova legislação propõe é uma mudança cultural. São oportunidades para que brancos, negros, indígenas, todos, enfim, possam conhecer a história brasileira que ainda não foi devidamente contada.

Em 2013, a lei No 10.639 completa 10 anos. Momento propício para comemoração, reflexão, avaliação das ações e estratégias. Há experiências exitosas de educação antirracista ocorrendo em todo o território brasileiro, ações que podem ser consideradas pontuais, mas que merecem todo o reconhecimento porque, na maioria das vezes, são ações desenvolvidas por professores ligados ao Movimento Negro que contribuem, sem medir esforços, para mudanças significativas da sociedade. Somos a resistência!

O que precisamos potencializar são o compromisso e a responsabilidade dos trabalhadores atuantes nos sistemas de educação pública e privada do País, no sentido do cumprimento da lei. No processo de implementação e institucionalização de uma educação que promova e oportunize o acesso de todos os cidadãos aos bens de consumo materiais e imateriais, é de suma importância a reflexão e a avaliação. Tais atitudes é que podem fazer com que todos passem a defender um processo impulsionador do redimensionamento das ações e estratégias para garantir um ambiente escolar que acolha a todos e onde vigorem condições de permanência e de continuidade dos estudos.

O papel da educação formal é fundamental para que aconteçam as mudanças sociais tão almejadas por todos nós. Nela, o que se quer criar são práticas pedagógicas que orientem e promovam ações capazes de valorizar a diversidade étnicorracial. Ações capazes de intervir na formação do pensamento das pessoas, com vistas à construção de novos valores e à revisão de valores distorcidos – como o preconceito racial, a violência contra a mulher, a homofobia –, buscando a justiça social, o fortalecimento de uma identidade cultural humanizada e o reconhecimento dos direitos inerentes aos seres humanos.

Educar para a Igualdade Racial deve-se traduzir na ampla possibilidade de surgimento de um novo olhar sobre a história de resistência de um povo ao longo de mais de 500 anos. Tal possibilidade exige uma sistemática que contemple alguns pontos: o início, por certo, por nossa origem no continente africano; pelo tráfico; pelos 500 anos de escravidão; por Zumbi dos Palmares; pelo movimento de luta dos Quilombolas; pelas cartas de alforria compradas com o suor do povo negro; pela Conjuração Baiana, que foi uma organização de um povo que nunca deixou de lutar contra a escravidão; pelas leis que não garantiam de fato os nossos direitos de seres humanos – a Lei do Sexagenário, a do Ventre Livre, a Eusébio de Queiroz, a Lei Áurea – que pouco contribuíram para dar dignidade às pessoas, pois sempre se contava com uma maneira de burlar as normas, prejudicando ainda mais a nossa população; pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1966, com a qual as Nações Unidas se comprometem na luta contra o racismo; pelo Dia da Consciência Negra; pelo crescimento das organizações em defesa de um mundo justo para todos; pela fundação do Movimento Negro Unificado; pelo Estatuto de Igualdade Racial; pela história da África nas escolas; pela demarcação das terras quilombolas; pela criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR),em 2003; e pela aprovação da lei no 10.369/03. Trata-se de uma trajetória de luta que, hoje, atinge um momento em que não queremos ficar sós. A convocação é para que todos possam vir conosco para continuarmos a nossa história.

Os desafios são grandes, mas não fugimos da luta. Possibilitar que crianças, jovens, adolescentes e adultos tenham oportunidade de, efetivamente, valorizar nossa história, nossa cultura, é construir coletivamente uma Educação que possibilite a vigência de relações etnicorraciais nas salas de aula, tendo sempre como perspectiva a necessidade de serem ultrapassados os muros da escola e se ganhar TODA A SOCIEDADE num emaranhado de compromissos a serem honrados por todos nós.

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Sobre a autora: Iêda Leal é Coordenadora do Centro de Referência Negra Lélia Gonzales e Secretária de Igualdade Racial da CUT-GO. 

Fonte: Revista Mátria, edição março 2013.
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15 de julho de 2013

Lélia Gonzalez: Mulher Negra na História do Brasil

por Ana Maria Felippe

Neste ano de 2009, já contamos 15 anos que a guerreira Lélia Gonzalez passou à condição de “ancestral”.  A atualidade da luta que travou; sobre a qual refletiu e ensinou nos faz reviver um pouco de sua trajetória. Que seu exemplo seja guia nessa luta que, a cada caminhada, constatamos mais a fazer: a luta contra o racismo.

Lélia Gonzalez nasceu “de Almeida”, em Belo Horizonte-MG, em 1º de fevereiro de 1935.  Tinha 59 anos quando faleceu, em 10 de julho de 1994, no bairro de Santa Teresa, na cidade do Rio de Janeiro.

Quando Lélia era criança, sua família instalou-se no Rio, na favela do Pinto, bairro do Leblon, ao lado do Clube de Regatas do Flamengo, onde jogava (e depois foi técnico) seu irmão, Jaime de Almeida (nascido em 1920), por quem nutria enorme admiração e nos passos de quem seguiu torcendo pelo Flamengo e gostando muito de futebol.  Logo depois, a família mudou-se para o subúrbio, para uma casa em Ricardo de Albuquerque.  Pela localização da residência, se percebe que Lélia viajou muito no trem suburbano da Central do Brasil, junto com o “povão” (como dizia), principalmente quando estudou no Colégio Estadual Orsina da Fonseca (ao lado do terminal da Central do Brasil, no centro da cidade) e no Colégio Pedro II (na Av. Marechal Floriano, também próximo a Central do Brasil).

Lélia era a penúltima de 18 irmãos/ãs; filha de pai negro (Acácio Joaquim de Almeida), ferroviário, e mãe índia (Urcinda Seraphina de Almeida).  À medida que irmãs e irmãos iam constituindo novas famílias, Lélia cuidava da mãe, já residindo na Tijuca, até o final dos anos 1960, quando Dona Urcinda faleceu.  Casou-se aos 28 anos, para assumir definitivamente o sobrenome Gonzalez.

Nas escolas e nas faculdades (graduou-se em História/Geografia e Filosofia) era reconhecida pela dedicação e inteligência.  O catedrático Tarcísio Padilha logo percebeu a capacidade daquela aluna negra e convidou-a para ser sua assistente, no curso de Filosofia, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, mais tarde, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Como educadora, Lélia lecionou em muitas escolas de nível médio, em faculdades e universidades.  Foi professora no Instituto de Educação, no Colégio de Aplicação (UERJ), na rede estadual de ensino.  Pela inteligência e conhecimento que demonstrava na argumentação e por sua capacidade de comunicar e instigar alunos e alunas à reflexão, a professora negra foi muito bem recebida em escolas confessionais, tendo sido, também, professora convidada no Centro de Estudos de Pessoal, do Exército Brasileiro, por alguns anos.

No final dos anos 1960 e início de 1970, Lélia era uma assumida mulher negra: “Essa questão do branqueamento bateu forte em mim e eu sei que bate muito forte em muitos negros também. Há também o problema de que, na escola, a gente aprende aquelas baboseiras sobre os índios e os negros; na própria universidade o problema do negro não é tratado nos seus devidos termos.”1

Foi em 1982 que Lélia escreveu “Lugar de negro”, junto com Carlos Hasenbalg2.  E por que demoraria 12 anos para gritar, por escrito? Porque só em 1982 Lélia teria firmado na escrita que “O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas, etc., até a polícia formalmente constituída3.  Desde a casa-grande e do sobrado4, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo.  Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço.”5?

Antes de mostrar na escrita, Lélia mostrava na palavra, na oralidade.  Na verdade (para usar uma expressão corrente em sua linguagem), sua proposta sempre foi falada.  Quando compreendeu teoricamente6 a questão da opressão e da exclusão, Lélia continuou fazendo exatamente a mesma trajetória teórica e intelectual que seguia anteriormente, mas, nesse momento, ela se dedica à leitura dos pensadores negros, da história do povo negro, das rainhas negras, lendo e refletindo noite adentro.  A inteligência e a desenvoltura teórica – que continuou exercendo institucionalmente, como professora na Pontifícia Universidade Católica, até o final da vida, tendo sido eleita Chefe do Departamento de Sociologia, um mês antes – foi posta a serviço da realidade e da necessidade do povo negro e, em especial, das mulheres negras.  Lélia passa a ser a grande referência teórica do Movimento Negro (principalmente do novo7 MN, nos anos 1970, que ajudou a fundar).  É a primeira intelectual negra no País.  É nessa condição que está citada no Dicionário “Mulheres do Brasil”8, na Enciclopédia Encarta Africana9 e, em “Mulheres Negras do Brasil10. É nessa condição que tornou-se referência como matrona para grupos de mulheres negras, bibliotecas, salas de leitura, prêmios, escolas, jornadas, seminários, dentre outros, conforme consta na indicação das homenagens em seu site oficial www.leliagonzalez.org.br.

Lélia Gonzalez teve uma trajetória, permanente e irrestrita, na direção do conhecimento.  Lia, elaborava e falava.  (Lia e falava nas línguas espanhola, francesa e inglesa.).   Pela fala, olho no olho, ela sabia que conhecimento buscar em sua riquíssima bagagem teórica (Filosofia, História, Teoria da Comunicação, Proxemia, Psicologia e Psicanálise, Antropologia, Sociologia, Teoria da Arte e Estética, Teoria dos Objetos, Política, Hermenêutica) para fazer com que o/a interlocutor/a compreendesse a questão “crucial”.  Ou, no embate político com brancos e brancas, ela buscava o contrapé teórico para dissuadir “brilhantemente” o/a adversário/a teórico/a ou ideológico/a.  Sua capacidade de interpretação se mostrou na crítica às ideologias e à hegemonia de dominação (de lógica machista, branca e européia) que sempre forçou o povo negro ao lugar de submissão, de menor condição e capacidade.

Lélia não tinha paciência para a elaboração escrita, nos moldes acadêmicos!  “No meu caso, fiz um tipo de escolha, que foi a militância de rua, participando de organizações negras, de seminários.  Na medida em que nós, os intelectuais negros orgânicos, somos tão poucos, realmente existe um grande leque de atividades para poder responder às exigências que nos são colocadas.”11  O universo de conhecimento que Lélia trazia, forçosamente determinado por ela para a transformação do real, muito mais tem a ver com a oralidade africana de Griot, do que com a academia ocidental.  Lélia representou uma Griot que conta histórias verdadeiras para seu povo.  Ela falava e ensinava não só para preservar a história, mas, principalmente, para resgatar as genealogias, as origens e as tradições de seu povo, para que esse povo compreendesse a lógica da discriminação e alcançasse a consciência, resgatando o orgulho de si mesmo, para a superação da condição de exclusão em que havia sido colocado.  Foi na defesa desse povo que, dentre outras atividades, participou de seminários nacionais e internacionais que duraram, pelo menos, de 1975 a 1989.  A necessidade de implementação e transformação, foi reconhecida pela atriz e política Ruth Escobar (presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, do qual Lélia era membro) que a indicou publicamente, em editorial do jornal Folha de São Paulo, para ocupar a vaga do Ministério da Cultura, em 1985.

Entre traduções de livros de filosofia (Editora Freitas Bastos), textos de palestras e “Lugar de Negro”, Lélia deixou “Festas Populares no Brasil”, editora Index, 1987, premiado na Feira Internacional do Livro, de Leipzig, Alemanha, na categoria “Os mais belos livros do mundo”, além de panfletos político-sociais, partidários, engajados, de muita reflexão.  Seus escritos, simultaneamente permeados pelos cenários da ditadura militar e da emergência dos movimentos sociais, são reveladores de sua capacidade intelectual e identificam sua constante preocupação em articular as lutas mais amplas da sociedade com a demanda específica dos negros, das mulheres e dos homossexuais.  A preocupação com os excluídos vai nortear suas campanhas para cargos públicos, em 1982 (PT, 1ª suplente como Deputada Federal) e em 1986 (PDT, suplente de Deputada Estadual), tendo como principais referências as liberdades individuais e as transformações sociais.

Lélia sempre acreditou que uma sociedade solidária e fraterna é possível.  Para isso, compreendia como necessário que, além do engajamento na luta política mais ampla, os grupos não dominantes, excluídos do poder, deviam produzir seu próprio conhecimento.  Foi em razão disso que se dedicou ao estudo das culturas humanas, especialmente da cultura negra.

Ressalte-se que muitos de seus escritos e falas (grande parte de sua obra compõe-se de palestras gravadas ou textos), conjugando ciência e política (como poucos brancos e brancas podiam fazer) atuando contra o racismo e outras formas de preconceito, contribuíram para a formação acadêmica e cidadã de muitos dos que com ela conviveram direta ou indiretamente.

Na militância, Lélia participou da criação do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN-RJ), do Movimento Negro Unificado (MNU), em nível nacional, do Nzinga Coletivo de Mulheres Negras-RJ, do Olodum-BA, dentre outros.  Depois de sua morte, muitos grupos apareceram no País, lançando seu nome, em homenagem.  O Movimento Negro tem montado o Quilombo Lélia Gonzalez e Milton Santos nos vários encontros do Fórum Social Mundial.  São muitas as referências que continuam sendo feitas a Lélia Gonzalez, em nível internacional, e inúmeras as homenagens que recebe em nível nacional.  No subúrbio de Olaria (no Rio) o governo do estado deu o nome Lélia Gonzalez a uma escola de nível médio.  Raquel Andrade Barreto, mestre pela Pontifícia Universidade Católica-RJ, defendeu a dissertação "Enegrecendo o feminismo ou Feminizando a raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez" (2005), além de Elizabeth Viana que defendeu dissertação de mestrado na UFRJ, sob o título “Relações raciais, gênero e movimentos sociais: o pensamento de Lélia Gonzalez (1970-1990)” (2006).

Um pouco do pensamento de Lélia Gonzalez:

Construção da identidade:

O importante é procurar estar atento aos processos que estão ocorrendo dentro dessa sociedade, não só em relação ao negro, ou em relação à mulher.  Você tem que estar atento a esse processo global e atuar no interior dele para poder efetivamente desenvolver estratégias de luta.  ...só na prática é que se vai percebendo e construindo a identidade, porque o que está colocado em questão, também, é justamente uma identidade a ser construída, reconstruída, desconstruída, num processo dialético realmente muito rico.12

Frente Negra Brasileira /e/ a consciência racial no centro urbano:

O primeiro grande movimento ideológico pós-abolição, a Frente Negra Brasileira (1931-1938), buscou sintetizar ambas as práticas (assimilacionismo e prática cultural), na medida em que atraiu os dois tipos de entidade para o seu seio.  Por aí, dá para entender também o sucesso de sua mobilização.  Afinal, ela conseguiu trazer milhares de negros para os seus quadros.  Precedida pelo trabalho de uma imprensa negra cada vez mais militante, a FNB surgiu exatamente no grande centro econômico do país que era, e é, São Paulo.... Com isso estamos querendo ressaltar o seu caráter eminentemente urbano, uma vez que é o negro da cidade que, mais exposto às pressões do sistema dominante, aprofunda sua consciência racial.13

As Escolas de Samba:

O golpe de 1964 implicaria na desarticulação das elites intelectuais negras, de um lado, e no processo de integração das entidades de massa numa perspectiva capitalista, de outro.  As escolas de samba, por exemplo, cada vez mais, vão se transformando em empresas da indústria turística.  Os antigos mestres de um artesanato negro, que antes dirigiam as atividades nos barracões das escolas, foram sendo substituídos por artistas plásticos, cenógrafos, figurinistas etc. e tal... Os “nêgo véio” da Comissão de Frente foram substituídos por mulatas rebolativas e tesudas.  Os desfiles transformaram-se em espetáculos tipo teatro de revista, sob a direção de uma nova figura: o carnavalesco.14

A responsabilidade na militância /e/ Candeia:

Papo vai, papo vem, ele (Candeia) nos presenteou com o folheto do enredo para o próximo carnaval: Noventa Anos de Abolição [para a Escola de Samba Quilombo, fundada por ele, junto com Lélia e outros/as, em 1975].  Fora escrito por ele, Candeia, “baseado nas publicações de Edson Carneiro, Lélia Gonzalez, Nina Rodrigues, Arthur Ramos (...), Alípio Goulart”...   Surpresa e emocionada, disse-lhe que ainda não tinha um trabalho publicado digno de ter meu nome ao lado daqueles “cobras” (afinal, um artiguinho aqui, outro acolá, e de tempos em tempos, não significava nada).  Ele retrucou, dizendo que sabia muito bem do trabalho que eu vinha realizando “por aí” e que isso era tão importante quanto os livros dos “cobras’.  E foi aí, então, que me incumbiu de representar o Quilombo no Ato Público (contra o racismo)15: “Não importa o que você diga, que eu assino embaixo”.  Pela primeira vez, para mim, alguém me fazia refletir sobre a responsabilidade que se tem quando se começa um trabalho “por aí”.16

O aparecimento do Movimento de Mulheres Negras:

Em, 1975, quando as feministas ocidentais se reuniam na Associação Brasileira de Imprensa para comemorar o Ano Internacional da Mulher, elas ali compareceram, apresentando um documento onde caracterizavam a situação de opressão da mulher negra. Todavia, dados os caminhos seguidos por diferentes tendências que se constituíram a partir do “Grupão”, esse grupo pioneiro acabou por se desfazer e suas componentes continuaram a atuar, então, nas diferentes organizações que se criaram.

Os anos seguintes testemunharam a criação de grupos de mulheres negras (Aqualtune, 1979; Luiza Mahin, 1980; Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, 1982) que, de um modo ou outro, foram reabsorvidos pelo Movimento Negro. Todas nós, sem jamais termos nos distanciados do MN, continuamos nosso trabalho de militantes no interior das organizações mistas a que pertencíamos (André Rebouças, IPCN, SINBA, MNU etc.), sem, no entanto, desistir da discussão de nossas questões específicas junto aos nossos companheiros que, muitas vezes, tentavam nos excluir do nível das decisões, delegando-nos tarefas mais ”femininas”. Desnecessário dizer que o MN não deixava (e nem deixou ainda) de reproduzir certas práticas originárias de ideologia dominante, sobretudo no que diz respeito ao sexismo, como já dissemos. Todavia, como nós, mulheres e homens negros, nos conhecemos muito bem, nossas relações, apesar de todos os “pegas”, desenvolvem-se num plano mais igualitário cujas raízes, como dissemos acima, provêm de um mesmo solo: a experiência histórico-cultural comum. Por aí se explica a competição de muitos militantes com suas companheiras de luta. Mas, por outro lado, por aí também se explica o espaço que temos no interior do MN. E vale notar que, em termos de MNU, por exemplo, não apenas nós, mulheres, como nossos companheiros homossexuais, conquistamos o direito de discutir, em congresso, as nossas especificidades. E isto, num momento em que as esquerdas titubeavam sobre “tais questões”, receosas de que viessem “dividir a luta do operariado”.17

1 - O Pasquim (Entrevista), n° 871, 20 a 26/3/1986.
2 - Editora Marco Zero.  Até onde podemos saber, a editora não existe mais.
3 – Lélia chegou a ver o modo especial como o “grupo branco”, mais tarde, passou a se proteger com o fechamento de ruas, guardadas por vigilantes em guaritas.
4 - Referência explícita a Gilberto Freyre: “Casa Grande e Senzala” e “Sobrados e Mucambos”.  Lélia conheceu bem os escritos de Gilberto Freyre e não poupava a crítica direta ao “racismo cordial” que consta em sua obra.
5 - O Lugar de Negro, p. 15
6 – No vivido, Lélia sempre teve consciência do que era a opressão e a exclusão.
7 – Nos referimos ao Movimento Negro dos anos 1970 como “novo”, para lembrar as lutas anteriores, como a Frente Negra Brasileira – 1931-1938, e o Teatro Experimental do Negro – 1944.
8 - SHUMAHER, Shuma; VITAL BRAZIL, Érico. Jorge Zahar Editor.  Rio de Janeiro, 2000.
9 - MSN Encarta - African American History - Gonzales, Lélia – “uma mulher afro-brasileira que foi pioneira na política brasileira e nos círculos acadêmicos, no que se refere às causas das mulheres e dos negros. ... É uma figura proeminente na vida intelectual do Brasil nos anos pós 1950.   ... destacada como “professora negra”... Ativista dos direitos das mulheres no Brasil, Gonzales realçava a importância da educação para o desenvolvimento das mulheres negras....” (Gonzales, conforme grafado na enciclopédia)
10 - SHUMAHER, Shuma; VITAL BRAZIL, Érico. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007.
11 - da entrevista concedida à revista SEAF (Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos), republicada em forma de depoimento, como homenagem, na UAPÊ REVISTA DE CULTURA N.º 2 – “EM CANTOS DO BRASIL”  Editora Uapê , março 2000.
12 - da entrevista concedida à revista SEAF.
13 – Lugar de Negro, p. 23
14 – Lugar de Negro, p. 28
15 - Em São Paulo, 07 de julho de 1976, com o objetivo de “protestar contra os últimos acontecimentos discriminatórios contra negros, amplamente divulgados pela imprensa.”
16 – Lugar de Negro, p. 45-46.
17 – Da versão, em português, com algumas modificações, da comunicação “The Black Woman’s Place in the Brazilian Society”, apresentada na “1985 and Beyond: A National Conference”, promovida pelo African-American Political Caucus e pela Morgan State University (Baltimore, 9-12/8/84).

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- Sobre a autora: Ana Maria Felippe é carioca, graduada em Filosofia (UERJ); pós-graduada em Filosofia da Ciência (UFRJ), professora, articulista, consultora, fundadora do IPCN – Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, Coordenadora de Memória Lélia Gonzalez, atual presidente da SEAF – Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos. Contato: anafelippe@leliagonzalez.org.br
- Foto: Lélia Gonzalez, 1987, em Miami; do acervo do professor, etnólogo e historiador Carlos Moore.
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Lançamento blog oficial Lelia Gonzales


A partir de hoje, 15 de julho de 2013, estará ao ar o novo blog do Centro de Referência Negra Lélia Gonzales.

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